O ex-ministro do STF (Supremo
Tribunal Federal) Joaquim
Barbosa assistiu praticamente em silêncio ao impeachment de Dilma
Rousseff e aos principais fatos políticos deste ano no Brasil.
Depois de quase um ano sem dar
entrevistas, Barbosa, que montou escritório em São Paulo e hoje dá palestra e
faz pareceres jurídicos, recebeu a Folha no apartamento de
dois quartos que alugou na cidade.
Para o ex-ministro, que comandou
o julgamento do mensalão, o
impeachment foi "uma encenação" que fez o país retroceder a
um "passado no qual éramos considerados uma República de Bananas".
Barbosa acha que o governo de Michel Temer corre o risco de não chegar ao fim.
*
Folha - O senhor escreveu há
alguns meses em sua conta no Twitter que o afastamento de Dilma Rousseff foi um
"impeachment Tabajara". Por quê?
Joaquim Barbosa -
Tabajara porque aquilo foi uma encenação. Todos os passos já estavam planejados
desde 2015. Aqueles ritos ali [no Congresso] foram cumpridos apenas
formalmente.
O que houve foi que um grupo de
políticos que supostamente davam apoio ao governo num determinado momento
decidiu que iriam destituir a presidente. O resto foi pura encenação. Os
argumentos da defesa não eram levados em consideração, nada era pesado e
examinado sob uma ótica dialética.
Folha - O que sustentava esse
grupo? Porque dez pessoas apenas não fazem um impeachment.
Era um grupo de líderes em
manobras parlamentares que têm um modo de agir sorrateiro. Agem às sombras. E
num determinado momento decidiram [derrubar Dilma].
Acuados por acusações graves,
eles tinham uma motivação espúria: impedir a investigação de crimes por eles
praticados. Essa encenação toda foi um véu que se criou para encobrir a real
motivação, que continua válida.
O senhor acha que ainda há
risco para as investigações que estão em curso?
Há, sim, porque a sociedade
brasileira ainda não acordou para a fragilidade institucional que se criou
quando se mexeu num pilar fundamental do nosso sistema de governo, que é a
Presidência. Uma das consequências mais graves de todo esse processo foi o seu
enfraquecimento. Aquelas lideranças da sociedade que apoiaram com vigor, muitas
vezes com ódio, um ato grave como é o impeachment não tinham clareza da
desestabilização estrutural que ele provoca.
O impeachment foi um golpe?
Não digo que foi um golpe. Eu
digo que as formalidades externas foram observadas –mas eram só formalidades.
O impeachment não teve o apoio
de setores econômicos?
A partir de um determinado
momento, sob o pretexto de se trazer estabilidade, a elite econômica passou a
apoiar, aderiu. Mas a motivação inicial é muito clara.
E qual é o problema do
enfraquecimento da Presidência?
No momento em que você mina esse
pilar central, todo o resto passa a sofrer desse desequilíbrio estrutural.
Todas as teorias dos últimos 30 anos, de hipertrofia da Presidência, de seu
poder quase imperial, foram por água abaixo. A facilidade com que se destituiu
um presidente desmentiu todas essas teses.
No momento em que o Congresso
entra em conluio com o vice para derrubar um presidente da República, com toda
uma estrutura de poder que se une não para exercer controles constitucionais
mas sim para reunir em suas mãos a totalidade do poder, nasce o que eu chamo de
desequilíbrio estrutural.
Essa desestabilização empoderou
essa gente numa Presidência sem legitimidade unida a um Congresso com motivações
espúrias. E esse grupo se sente legitimado a praticar as maiores barbáries
institucionais contra o país.
Durante alguns meses, em
palestras, eu indagava à plateia: vocês acham que, concluído o impeachment,
numa democracia dessa dimensão, o país sobreviverá por dois anos e meio à
turbulência política que se seguirá?
E qual é a sua resposta?
Nós continuaremos em turbulência.
Isso só vai acabar no dia em que o Brasil tiver um presidente legitimado pela
soberania popular. Aceito de forma consensual, límpida, tranquila, pela grande
maioria da população.
O sr. já disse que talvez o
governo não chegue ao fim.
Corre o risco. É tão artificial
essa situação criada pelo impeachment que eu acho, sinceramente, que esse
governo não resistiria a uma série de grandes manifestações.
Que outros problemas o senhor
vê no governo?
Os cientistas políticos
consolidaram o pensamento de que o presidente depende do Congresso para
governar. E não é nada disso. Uma das características da boa Presidência é a
comunicação que o presidente tem diretamente com a nação, e não com o
Congresso. Ele governa em função da legitimidade, da liderança, da expressão da
sua vontade e da sua sintonia com o povo. Dilma não tinha nenhum desses
atributos.
Aí ela foi substituída por alguém
que também não os têm, mas que acha que está legitimado pelo fato de ter o
apoio de um grupo de parlamentares vistos pela população com alto grau de
suspeição. Ele [Temer] acha que vai se legitimar. Mas não vai. Não vai. Esse
malaise [mal estar] institucional vai perdurar durante os próximos dois anos.
E na área econômica?
O Brasil deu um passo para trás
gigantesco em 2016. As instituições democráticas vinham se fortalecendo de
maneira consistente nos últimos 30 anos. O Brasil nunca tinha vivido um período
tão longo de estabilidade.
E houve uma interrupção brutal
desse processo virtuoso. Essa é a grande perda. O Brasil de certa forma entra
num processo de "rebananização". É como se o país estivesse reatando
com um passado no qual éramos considerados uma República de Bananas. Isso é
muito claro. Basta ver o olhar que o mundo lança sobre o Brasil hoje.
E qual é ele?
É um olhar de desdém. Os países
centrais olham para as instituições brasileiras com suspeição. Os países em
desenvolvimento, se não hostilizam, querem certa distância. O Brasil se tornou
um anão político na sua região, onde deveria exercer liderança. É esse trunfo
que o país está perdendo.
Isso é recuperável?
No dia em que a sociedade
despertar e restaurar a Presidência através de uma eleição em que se escolha
alguém que representa os anseios da nação, isso limpa esse "malaise",
essa perda dos grandes trunfos.
O que o senhor achou da
aprovação da lei de abuso de autoridade na Câmara?
Tudo o que está acontecendo esta
semana no Congresso é desdobramento do controvertido processo de impeachment,
cujas motivações reais eram espúrias.
Ou seja: a partir do momento em
que se aceitou como natural o torpedeamento do pilar central do sistema
presidencialista, abriu-se caminho para o enfraquecimento de outras
instituições.
A lógica é a seguinte: se eu
posso derrubar um chefe de Estado, por que não posso intimidar e encurralar juízes?
Poucos intuíram –ou fingiram não intuir– que o que ocorreu no Brasil de abril a
agosto de 2016 resultaria no deslocamento do centro de gravidade da política
nacional, isto é, na emasculação da presidência da República e do Poder
Judiciário e no artificial robustecimento dos membros do Legislativo.
Tudo isso pode ainda ser
revertido pelo Senado, pelo veto presidencial ou pelo STF. O importante neste
momento é que cada um faça uma boa reflexão e assuma a sua parcela de culpa
pela baderna institucional que está tomando conta do país.
E as medidas de combate à
corrupção apresentadas pelo Ministério Público Federal e alteradas na Câmara?
Eu tenho resistência a algumas
das propostas, como legitimação de provas obtidas ilegalmente. E o momento [de
apresentá-las] foi inoportuno. Deu oportunidade a esse grupo hegemônico de
motivação espúria de tentar introduzir [na proposta] medidas que o
beneficiassem.
O que o sr. acha da Lava Jato?
Eu acompanho a Lava Jato muito à
distância, pela imprensa. Para mim é a Justiça que está dando toda a aparência
de estar funcionando.
O que o senhor acha da
hipótese de Lula ser preso?
Eu nunca li, nunca me debrucei
sobre essas acusações.
Sei que há uma mobilização, um
desejo, uma fúria para ver o Lula condenado e preso antes de ser sequer
julgado. E há uma repercussão clara disso nos meios de comunicação. Há um
esforço nesse sentido. Mas isso não me impressiona. Há um olhar muito negativo
do mundo sobre o Brasil hoje. Uma prisão sem fundamento de um ex-presidente com
o peso e a história do Lula só tornaria esse olhar ainda mais negativo. Teria
que ser algo incontestável.
Para finalizar: o senhor
continua na posição de não ser candidato a presidente?
Eu continuo. Seria uma aventura
muito grande eu me lançar na política, pelo meu temperamento, pelo meu
isolamento pessoal, pelo meu estilo de vida. Eu não tenho por trás de mim
nenhuma estrutura econômica, de comunicação. Nem penso em ter.
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